top of page
Buscar

Mangueiras do museu do Ingá

  • luizmors9
  • 23 de ago. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: 26 de ago. de 2024



A bela construção neoclássica do Museu do Ingá abriga um tesouro: o Acervo Banerj. Com a privatização do banco, em 1998, as 873 peças – pinturas, esculturas, gravuras e desenhos – saíram do cofre do 12º andar do prédio-sede do banco, no Centro do Rio de Janeiro, e foram transferidas para Niterói. A partir daí, passaram para a guarda do governo do Estado. A coleção começou a ser feita em 1965, no governo de Carlos Lacerda. Nessa época havia a concepção política de que o governo deveria ser um mecenas, que estimulasse os artistas e fomentasse seu trabalho. O objetivo era formar uma bela pinacoteca que bem representasse o Estado da Guanabara. O Banco destinava uma verba para a aquisição das obras, mas muitas também vieram como pagamento de dívidas. O  acervo está em ótimas condições na reserva técnica no porão do Museu do Ingá. O único senão – e que baita senão – é estar fora do alcance do olhar do cidadão, já que pouquíssimas vezes os quadros são expostos nas paredes centenárias do museu. Os nomes que compõem o conjunto são do primeiro time das artes plásticas do país. Estão lá Oswaldo Goeldi, considerado o maior gravurista do Brasil; Eduardo Sued, Djanira, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Iberê Camargo, Burle Marx e Alberto Guignard. Pelo menos duas obras da coleção utilizam um curioso pigmento, que faz parte da história das artes desde do século XIX. “São Sebastião”, pintado por Guignard, e “Gente da Ilha” de Di Cavalcanti, carregam a cor amarela típica do pigmento amarelo da índia.

A história por trás do Amarelo da Índia (Indian Yellow) conta que o pigmento era produzido pelos moradores da aldeia de Mirzapur, em Bihar, na Índia, no século XV, através da urina coletada de vacas. Os animais eram alimentados exclusivamente com folhas de manga para deixar a sua urina amarela e brilhante. O material era então coletado e vendido em forma de esferas para o exterior. A mangueira é uma das poucas plantas que produzem uma classe de compostos bastante raros: as xantonas. Isoladas em 1855 a partir de plantas utilizadas para o tratamento da disenteria, os compostos receberam esse nome a partir da palavra grega para amarelo (xanthos) porque quando isoladas apresentam forte cor amarela. A xantona presente na folha da mangueira é a euxantona. Ela não é digerida pela vaca, passando por seu sistema digestivo, onde reage com o ácido glucorônico e com magnésio da urina da vaca, resultando no euxantato de magnésio, o nome científico do amarelo da Índia. Alimentando as vacas exclusivamente com água e folhas de mangueira, os produtores garantem uma alta produção do euxantato de magnésio. O pigmento chegou à Inglaterra na década de 1780 e na Holanda ainda no início do século 17, por meio do comércio com as Índias Orientais. Em 1840, o Amarelo da Índia  integrava, pela primeira vez ,o catálogo da Winsor & Newton, famosa loja de produtos para artistas, fundada em 1832, sendo a partir daí, popularizada por pintores holandeses, tais como Jan Vermeer e Van Gogh.  Foram esses produtos que, vindos originalmente da Índia, chegaram ao Brasil e abasteceram os artistas brasileiros a partir dos primeiros anos do século XX. 

Mas as pinturas modernistas não são o único tesouro do museu. Em seu jardim, ladeando a antiga construção, duas mangueiras (Manguifera indica L.) chamam a atenção. A mangueira é nativa do sul e sudeste asiáticos e a manga é considerada a fruta nacional da Índia. Foram os portugueses os principais responsáveis por espalhar a mangueira pelo mundo, levando sementes e mudas de suas colônias na Ásia para suas colônias na África e no Novo Mundo nos séculos XVI e XVII. Onde houvesse clima tropical ela se adaptava. A Índia é o maior produtor de manga do mundo, responsável por nada menos que 40% da produção. Embora o Brasil tenha uma parcela muito mais modesta da produção (cerca de 4%) a manga se adaptou muito bem por aqui e caiu nas graças da população. Sobre a manga existem lendas e crendices populares, histórias e receitas, tendo inclusive se incorporado nas tradições religiosas afro-brasileiras, onde a mangueira é consagrada a Ogum Xoroquê, sendo suas folhas utilizadas em rituais de iniciação e em banhos de descarrego.  

As duas mangueiras que emolduram o Museu do Ingá não estão lá por acaso. Para entender como elas foram parar em seus jardins, temos que voltar no tempo, em uma viagem pela história política e social de Niterói e do Estado do Rio de Janeiro. A História do Palácio começa em 1860, ano em que foi erguido um chalé pelo político e médico José Martins Rocha. José era um cidadão destacado da província de Niterói, porque havia fundado o que, até aquele momento, era o único hospital da cidade. A bem da verdade, Nictheroy, como era grafada à época, então capital da Província do Rio de Janeiro, já possuía, desde 1851, o Lazareto de Jurujuba (onde hoje é o bairro de Charitas), mas este não era exatamente um hospital. O Lazareto funcionava como local de quarentena, abrigando marinheiros que acabavam de aportar, como forma de manter uma espécie de cordão sanitário, preservando a população de doenças trazidas de outros lugares. Eventualmente o Lazareto atendia a população da cidade, mas somente em casos extremos, como durante epidemias de febre amarela e varíola. A capital da Província não possuía, portanto, um hospital propriamente dito.

Foi José Martins Rocha, juntamente com o também médico João José Pimentel, os responsáveis pelo estabelecimento do primeiro hospital de Niterói, em 1859. Com o título de Casa de Saúde Nictheroyense, ele existia onde hoje é a rua Marquês do Paraná, nº3, e, como atestam diversos anúncios publicados em periódicos da época, tinha "a segura garantia na reputação médica dos seus proprietários". O hospital rendeu aos seus donos uma fortuna, com a qual José Martins comprou terrenos no Ingá e ergueu sua suntuosa mansão. E era tão lucrativo o negócio dos hospitais, que eles decidiram construir um novo, com as condições higiênicas apropriadas para receber uma clientela cada vez maior.

A província de Niterói era dona de terrenos bastante adequados em tamanho e localização, e a câmara municipal acertou a venda para os médicos, em 1863, de um local perfeito, que possuía ainda uma vantagem estratégica: além de amplo, havia uma elevação no centro do terreno, proporcionando bela vista panorâmica sobre a Baía de Guanabara, e recebendo sempre fresca aragem, mesmo em dias em que a cidade, lá embaixo, sufocava sob um calor abrasador. Ali surgiu o Hospital de São João Baptista de Nictheroy, onde hoje funciona o prédio da “Física Velha”, pertencente à Universidade Federal Fluminense. Sua localização era de fato excepcional, especialmente durante os surtos de tuberculose que se abatiam sobre a cidade. O fato de ocupar o alto de um morro mantinha o hospital isolado, afastando as doenças da população saudável e do resto da cidade. Para purificar os ares e aumentar esse isolamento, o Dr. José Martins ordenou o plantio de diversas árvores na encosta do morro. Vale lembrar que o principal tratamento para a tuberculose (se não o único) antes da descoberta dos antibióticos era a climaterapia: buscar ares limpos e puros, em lugares altos, frescos e arborizados. O novo hospital possuía ainda uma vantagem, especialmente para o Dr. José Martins, já que era muito próximo a sua suntuosa casa. Sabedor dos benefícios da arborização para a purificação dos ares, ele aproveitou o amplo jardim de sua residência, e mandou plantar as duas mangueiras que, hoje, são árvores protegidas da cidade. A escolha pelas mangueiras não foi aleatória. Queria o médico que fossem árvores frutíferas. Queria também que dessem boa sombra. E por último, sendo homem de ciência, que tivessem valor medicinal.

De fato, a medicina popular há muito utiliza a mangueira. As folhas como antiasmáticas, as sementes como vermífugas e a seiva no tratamento de hemorragias, laringites e infecções orais. Mas também a medicina profissional, com seus protocolos rígidos, reconhecem o valor médico da mangueira. No tratamento da tuberculose, o cheiro de terebintina exalado pela mangueira era amplamente reconhecido como um excelente depurativo do ar, tornando-o mais puro e saudável. Havia ainda mais uma razão para a escolha das mangueiras para serem as estrelas do jardim do palacete do Dr. José Martins, e desta vez uma ração de ordem política. Além de médico destacado, o Dr José Martins era o presidente do Partido Liberal no Estado do Rio de Janeiro. Surgido em 1831, o PL dava apoio ao império, embora fosse contrário à escravidão. Sua atuação era em defesa, principalmente, das camadas médias urbanas, e seu símbolo era um Bem-te-vi, pássaro que adora se alimentar de mangas. Quis o médico que os Bem-te-vis fossem atraídos à sua residência, onde tantas vezes os Liberais se reuniam para tramar planos e rever posições políticas.  

As mangueiras do museu do Ingá, portanto, foram plantadas ali por volta do ano 1860. Desde então são testemunhas das mudanças políticas e sociais da cidade, do estado e do país. Com a instauração da república, a cidade do Rio de Janeiro havia se tornado Distrito Federal, elevando Niterói à capital do Estado do Rio. O Dr José Martins morreu em 1896, e em 1903 o casarão foi comprado pelo governador Nilo Peçanha para ser a sede do governo do Estado, papel que desempenhou durante mais de 70 anos. Devido à fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro em 1975, a capital do Estado foi transferida para a cidade do Rio. Niterói deixou de ser capital e o palácio perdeu sua finalidade política. Dois anos depois, em 1977, ele passa a ter finalidade artística, tornando-se o Museu do Ingá, sendo tombado em 1983 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). 

As duas mangueiras que enfeitam os jardins do Museu do Ingá contam tantas histórias, e são tão carregadas de simbolismo quanto os quadros que o museu abriga. Elas nos lembram do amarelo da Índia, presente em alguns quadros do acervo do Museu, e cuja matéria prima vem da folha da mangueira. São também representantes de todas as mudanças pelas quais passou a cidade e o estado nos últimos dois séculos. Vivenciaram reuniões políticas no Brasil Império, foram a sede do poder do Estado durante as primeiras décadas da república, e hoje emolduram um dos mais interessantes museus de Niterói. Por sua história, antiguidade e importância, merecem fazer parte do acervo do museu e receber tantas visitas e atenção quanto os quadros da coleção Banerj. Elas têm ainda uma vantagem em relação aos quadros: enquanto estes permanecem, via de regra, recolhidos à reserva técnica do museu, sendo raramente expostos, as mangueiras se mostram diariamente à quem passar pelas calçadas do Ingá.


Para Usar em Sala de Aula


Biologia: Sistema de classificação e nomenclatura científica- abordando as espécies representantes da família Anacardiaceae.

História: História do Brasil- abordando a história da cidade de Niterói e do Brasil, além do Museu do Ingá.

Antropologia/Multiculturalismo: por ser uma planta de caráter ritualístico, utilizada na medicina popular e comercializada no Mercado de Madureira.

Artes/Pintura: abordando a história dos diferentes materiais utilizados para a produção de pigmentos naturais.




 
 
 

Comments


bottom of page